Crônica: Nunca é pelo pão

by - sexta-feira, junho 05, 2015

Crônica:Nunca(imagem: via)
Era uma tarde qualquer. Ele estava distraído com seu livro e ela olhava pela janela. Lá longe, avistou um rapaz, devia ter uns 20,25 anos. Estava trazendo alguns pães. Nisso ela lembrou que estava quase na hora do café. Olhou para o seu companheiro. Há quanto tempo já estavam juntos? Aparentavam muito mais do que aqueles poucos anos. Ela pergunta:  —  "Querido, você comprou o pão do nosso café da tarde?". Seu companheiro tirou os olhos das páginas e meio confuso responde:  —  "Nossa, esqueci...", e voltou para sua leitura.

"Nossa,esqueci...". Aquilo ecoou na sua mente: "Nossa,esqueci...". É isso? É só isso? Depois de todo aquele tempo,de todos os cafés da tarde, ele simplesmente não tinha trazido o pão para eles. E nisso, ela lembrou de todas as vezes que ele simplesmente esqueceu. O primeiro aniversário deles juntos, o segundo também e todos os outros. Teve um que ele lembrou, mas foi porque uma amiga deu um toque no dia anterior. Quanta consideração, precisar de terceiros para lembrar de uma data só deles. Ah,mas os homens são assim mesmo. São esquecidos. Claro... Eles podem ser o que quiserem e apenas precisamos aceitar a falta de atenção deles, pensando que são pobres coitadinhos distraídos por natureza. 

"Nossa,esqueci...". Quantas vezes ela não já tinha ouvido aquela mesma frase? Sem nem uma mínima tentativa de desculpas. Ou uma tentativa de ajeitar as coisas.Levantar daquele sofá, largar o livro idiota e ir comprar o pão. Mas não. Lá estava ele. Ocupadíssimo, vivendo a vida de um outro alguém. Talvez tentando escapar da vida que eles tinham juntos. Então é isso.Só isso. A vida inteira de descasos e milhares de "esqueci". Não dava mais. Ela caminhou até a porta e saiu, sem uma palavra, sem olhar pra trás.

Desceu as escadas do seu prédio. Não estava a fim de elevador. Precisava andar para pensar. Pensar e andar. Era seu lema a cada briga. Mas essa não havia sido uma,não é mesmo? Então porque ela precisava ficar longe o mais rápido possível? Caminhou pela calçada, sentindo-se a última das mulheres. A menos amada. Nunca é pelo pão. Nunca é apenas o pão. Eram todas aquelas pequenas desatenções. Todas as vezes que ela queria sair, mas ele estava ocupado demais com suas diversões. Ocupado demais para ela. 

Um casal passou ao seu lado. De mãos dadas, eles estavam rindo e trocando beijos. "Eu também já passei por essa fase.É melhor vocês aproveitarem as flores do começo,porque acaba. Sempre acaba.", pensou. E  ela não aguentava mais ver aquela cena. Entrou no primeiro comércio que viu. Um cheiro delicioso atingiu-a. Pão quente? Nossa, quanta ironia. Ela estava em uma padaria. Havia uma pequena fila. Provavelmente pessoas querendo levar pão para suas famílias. Sortudos.

Ela seguiu em frente e sentou na bancada. Perguntou ao atendente se eles serviam lanche na hora. O rapaz respondeu que sim. Ela fez seu pedido: pão na chapa e café puro. Nada mais. Nem açúcar. Esperou até ser servida e comeu devagar. Levantou seu copo e fez um brinde silencioso. Café puro, para brindar o sabor real da vida. Terminou seu lanche,pagou e ficou lá sentada. Quantas horas teriam passado já? Ela não tinha ideia. Nem queria ter. Apenas levantou e voltou para casa. Pensava no quanto ela era jovem e no tanto que tinha ainda para experimentar. Ela não poderia simplesmente se deixar abater. 

Voltou para o seu prédio, subiu as escadas e abriu a porta. Lá estava ele com os olhos marejados e cheios de preocupação. O livro, jogado no tapete. Correu para ela e disse angustiado:—  "Você está bem! Você está bem? Onde você estava? Por que você saiu sem falar nada?". Ele a abraçou apertado, tão apertado quanto uma criancinha com medo. Ela o abraçou de volta e disse: —  "Você sentiu minha falta?". Ao que ele respondeu: —  "Claro que sim. Eu amo você. Como posso não sentir sua falta,mulher?". Ela se sentiu estranha, mas estranha de um jeito bom. Quantas vezes ele dizia que a amava? Pensando bem, eram muitas. Muitas vezes. Talvez não todo dia, mas muitos dias por muitos anos. Ela sorriu de leve e disse: —  "Eu também te amo. Te amo muito. Me desculpa por sair assim, sem avisar".

Então, eles continuaram abraçados, sem falar mais nada. Afinal, era apenas um pão ou um pouco de distração algumas vezes. Sim, ele a amava. Mostrava de vários jeitos. Por que ela não lembrava disso? Talvez, no fim, ela também fosse esquecida. Eles caminharam para a janela de mãos dadas e ficaram lá, apenas abraçados. A lua parecia brilhar com mais vontade. E eles continuaram abraçados. Apenas abraçados, olhando o céu.

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